É minha intenção divulgar, através deste meio, as minhas ideias a respeito da sociedade em que vivemos, expressas em todos os livros que escrevi, mais ensaísticos ou mais literários - Luis Valente Rosa.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Arte: obra e produção

Tenho vindo a elaborar uma antologia musical, segundo as minhas obsessões, dividida em quatro partes: a clássica, a contemporânea, o jazz e a pop/rock.

No meio do meu esforço classificativo, ter-me-á dado, creio, para a taxionomia (e muito bem) e concluí que a primeira divisão a operar em relação à música é entre dois grupos: a música apolínea e a dionisíaca.

Os conceitos não são meus, são do Nietzsche (A origem da tragédia). Rapidamente, Apolo representa a beleza, a harmonia, a perfeição e, consequentemente, o divino no seu esplendor. Em contrapartida, Dionysos é um deus humano (é o único deus grego filho de uma mulher mortal). Como tal, representa a imperfeição e, sobretudo, a dilaceração. É, assim, construído em alternância de dissonância e harmonia e descrito através de diversas oposições: o bem e o mal, o belo e o feio, a violência e a calma, o ruído e o silêncio (se pensarmos na música), etc..

Com base numa conceptualização como esta, podemos deduzir que o dionisíaco se aproxima do acto de realizar a arte, implicando incluir o próprio apolíneo (o belo perfeito) como resultado periódico desse esforço, enquanto o apolíneo se encontra mais perto do conceito de obra (esvaziando do processo artístico tudo o que nele existiu de imperfeição).

No domínio do apolíneo, reina o Bach. E toda a música divina. De uma maneira geral, agrupa todo o período clássico, embora o romantismo final já se torne um pouco dionisíaco (o Beethoven tardio, por exemplo), culminando com o aparecimento do Mahler. Assim como inclui parte da grande arte posterior: os minimalistas (apesar de, por vezes, não parecer), o jazz “nórdico” (Gustavsen), o fronteiriço entre o jazz e a música contemporânea (Bjørnstad) e a pop menos progressiva (onde proliferam os “cançoneteiros” – Llach incluído – e a pop sinfónica – os Yes e os próprios Pink Floyd).

No domínio do dionisíaco, reina o Jarrett. E toda a música humana. A começar pelo jazz em geral (Bley), a continuar na música contemporânea, também de uma maneira geral (de Rachmaninov a Górecki), e a acabar na pop/rock progressiva, sobretudo do Peter Hammill (e dos Amon Düül II – falando dos que seleccionei para a antologia).

Um parêntesis: não incluo os serialistas, dodecafónicos e similares neste grupo dionisíaco porque não há neles dilaceração entre a harmonia e a dissonância: a dissonância é homogénea, omnipresente. Portanto, não há a beleza apolínea (que o dionisíaco supõe). Tal significa, percebo-o agora, que a minha taxionomia inicial deveria incluir uma terceira categoria: o dissonante (o apolíneo só com o belo, o dissonante só com a dissonância e o dionisíaco com a alternância de ambos).

Na realidade, de uma forma mais ou menos consciente, lidamos com duas atitudes (pegando na dicotomia inicial) mentais face à música, em particular, e face à arte, em geral (embora tal seja mais visível na música). Uma focaliza-se na obra de arte. Outra, na sua produção.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Carnaval

Perguntaram-me porque é que eu embirrava com o Carnaval. E eu apresentei três razões.

Em primeiro lugar, e talvez acima de tudo, porque odeio o travestismo. Como já expliquei múltiplas vezes, gosto que as pessoas assumam o que são e não se façam passar pelo que não são. Não é, de todo, um problema confinado aos homens que se mascaram de mulheres (o que não deixa de ser de um ridículo atroz). É muito mais do que isso. Nós somos pressionados a usar máscaras no dia-a-dia. Por isso, não precisamos de um dia para o fazer. Antes deveríamos ter um dia para sermos a totalidade do que nos habita, do que somos. Ou seja, temos de reconhecer que, infelizmente, a fantasia já abunda no modo como nos relacionamos com o mundo que nos rodeia: frequentemente evitamos a procura da verdade, ou a reflexão sobre o que está certo e o que está errado, para procurar abrigo no politicamente correcto, nas normas ensinadas pela tradição ou, simplesmente, no ideal-tipo que elaborámos a nosso respeito. Não precisamos, assim, de um dia com mais fantasia ainda. E mais mentira e faz-de-conta.

Em segundo lugar, é regra, no Carnaval, as pessoas encontrarem um modo de divertimento que incomoda os outros. Existe a velha máxima “É Carnaval, ninguém leva a mal”. Por isso, os “carnavaleiros” aproveitam para transgredir e, muitas vezes, fazer o que não é possível noutra altura. E essa transgressão pode ser grave, nomeadamente nos abusos de índole sexual que os homens exercem sobre as mulheres. De qualquer maneira, a coisa já é incomodativa mesmo sem esses excessos: há o hábito de fazer barulho, molhar, provocar cheiros, sujar (nem que seja com “papelinhos” ou serpentinas), assustar, etc.. Por outras palavras, o Carnaval é a institucionalização da possibilidade de causar dano aos outros contra a vontade destes. E eu sempre me perguntei: porque é que o prazer dos outros tem de colidir com o meu? Ou seja, dito de uma forma mais prosaica, porque é que esta gente se diverte a chatear os outros? E onde está a minha liberdade “sagrada” de não querer brincar ao Carnaval e não querer ser incomodado? É que o “É Carnaval, ninguém leva a mal” deve ter limites: eu não posso dar, na brincadeira, um tiro num desgraçado qualquer. Portanto, quem define o limite da transgressão? Em suma, o que me irrita é o descontrole, a ausência de deveres básicos sem os quais não concebo a vida em sociedade e, muito menos, qualquer prazer de aí viver.

Finalmente, acho completamente ridículo uma pessoa divertir-se por encomenda. Com se a alegria fosse algo programável, do género: “hoje decidi que vou estar muito contente”. É um pouco o mesmo que sinto na passagem de ano. Ora, a minha maneira de ser conduz-me logo ao oposto: quando me tiram uma cadeira, tenho logo vontade de me sentar. Por isso embirro com o divertimento obrigatório nesse(s) dia(s) específico(s).

Mas ainda me irrita mais outra coisa: a constatação, natural a partir do que disse acima, de que todas essas pessoas, que sorriem de orelha a orelha e dançam em delírio, estão a agir com superficialidade. Ou mesmo a fingir. Ou a fazer uma grande representação teatral (cada um que escolha onde melhor se encaixa). Ou, então – o que é muito pior –, são autómatos de sensibilidade comandada pelas instruções do calendário.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Liberdade e amor

A solidão é (ou não) um pressuposto essencial da liberdade? Se for, está explicado porque é que a esquerda é individualista e a direita é gregária. E por que razão a direita anda sempre a defender a família. É porque, de facto, ela implica uma limitação importante da liberdade. Pode acontecer que nós desejemos essa limitação. E que a possamos preferir a uma solidão em privação emocional (sem amor, sem filhos, etc.). Mas não deixa de existir.

Sou, deste modo, obrigado a deduzir – dedução terrível – que o amor é um conceito de direita. Pelo que a grande dilaceração do homem pode residir na sujeição a essas forças de sentidos contrários que são, ao mesmo tempo, as suas duas características essenciais: a pulsão da liberdade (esquerda) e a pulsão do amor (direita). Estou a falar de um homem não submisso a qualquer doutrina. Porque os outros poderão não ter a pulsão da liberdade (os submetidos às doutrinas de direita) ou a pulsão do amor (os submetidos às doutrinas de esquerda – veja-se, a esse título, o imaginário da extrema-esquerda do meu tempo, muito visível nas peças políticas do Sartre, no qual o amor era um capricho burguês que devia ser totalmente submetido aos interesses da revolução).

Seguindo este raciocínio (que está mesmo com ar de, em breve, se tornar delirante), só a arte poderá talvez juntar os dois conceitos. Ela envolve uma liberdade máxima (daí a necessidade de solidão e de isolamento: ninguém consegue fazer arte em grupo, acho eu) e um amor obcecado (pelo processo artístico, ou seja, pelo próprio acto de se realizar essa arte – já para não falar do que a arte significa de amor, de dádiva abnegada em prol da dignificação da vida humana).

De qualquer forma, tal teoria significaria que todos nós temos de escolher, algures no tempo, entre essas duas grandes pulsões (estou um autêntico freudiano), fazendo-o de forma objectiva, através de actos públicos como a união com outro ser (casamento ou união de facto).

Como resultado de tal teoria, podemos concluir que a direita e a esquerda não são apenas ideias, coisas interiores em nós. São também manifestações exteriores, resultantes de opções deliberadas.

O que me lixa um bocado, porque eu gostava de ser um homem de esquerda em pleno, ou seja, sem mácula, e vejo-me um esquerdista pecador, cedendo, de forma muito significativa (e de forma muito intencional), à minha pulsão de direita. E faço-o, sentindo-me bem nessa minha vertente de direita.

E não me venham (à maneira do Hegel – a “dialéctica do senhor e do escravo”) com a história de a liberdade ter mais a ver com o nosso pensamento, o nosso interior, do que com os nossos actos (com o nosso exterior). Porque a liberdade é tudo. O que significa ser também o exterior.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

A verdade

Aquilo a que chamo procurar a verdade é tentar uma apreciação, ou uma apreensão, absoluta da realidade, em vez de uma apreensão relativa. Pois a relatividade implica que seja parcial, naturalmente distorcida por via do que nos liga a qualquer coisa: pode ser um partido político ou um clube de futebol, como pode ser uma pessoa nossa amiga ou nossa familiar.

Quando existem campanhas eleitorais, por exemplo, a leitura das pessoas sobre os factos é totalmente condicionada (relativizada) pelo partido com que simpatizam. Se, amanhã, o líder do seu partido disser a mesma anormalidade que disse, hoje, o principal concorrente, os comentários e a interpretação serão totalmente diferentes. Ou como no futebol, pois nunca vi um apoiante do clube A defender que houve penalty contra o seu próprio clube e o do clube B argumentar que não houve. Isso nunca acontece. Ou estão os dois de acordo, ou cada um defende o seu clube.

No fundo, a coisa é bastante ridícula se pensarmos que as pessoas não se importam de passar por estúpidas, ou mal educadas (ou ignorantes), só para não dizerem mal dos seus. Ou seja, submetem-se ao ridículo para proteger os seus.

Mas onde eu acho que a coisa se sente mais é com os familiares, sobretudo com os filhos. É verdade que todos nós achamos natural que assim seja. Mas não deixa de ser caricato ver pais a tentarem convencer as outras pessoas de qualidades que os filhos manifestamente não têm. Ou a dizerem que determinada coisa não aconteceu – ou não aconteceu de determinada forma – quando todos sabemos muito bem a verdade.

O problema é as pessoas parecerem não perceber que não ajudam os outros. Pelo contrário, fazem com que, no dia em que o elogio seja merecido, ninguém acredite nele. Por outras palavras: em vez de ajudar, desajudam.

Porém, esta aparente estupidez no comportamento, de facto, não existe. Porque não acho que as pessoas se ridicularizem para defender os outros. Não fazem isso por serem altruístas e quererem proteger os outros. A realidade é completamente diversa.

Como já tentei explicar algures a propósito da cultura, as pessoas fazem-no para se defender a si próprias, para se auto-elogiarem. O que acontece é não quererem reconhecer que as suas características, as suas opções, não são as melhores. O objectivo não é mostrar o valor daquele partido, daquele clube de futebol ou daquele filho. O que importa é valorizar o meu partido, o meu clube, o meu filho. Porque, ao fazê-lo, estou a valorizar-me. Em suma, as pessoas não percebem que os erros dos seus protegidos não são, na maior parte dos casos, desprestigiantes para a sua própria pessoa. Acima de tudo, não percebem que o que os desprestigia – por os tornar ridículos – é precisamente a defesa de algo que surge aos olhos dos outros como inverosímil, absurdo, sem sentido.

Por todas estas razões, a procura da verdade, por parte de pessoas como eu, é quase um trabalho de detective. Quer dizer, observar e ouvir, dando o necessário desconto às apreciações relativas que vamos encontrando pelo caminho, usando a dúvida metódica em permanência. Assim fazendo, procuro ser lúcido em relação aos meus. Sobretudo em relação à família, pois não tenho partido político nem clube de futebol. Por isso sou tão crítico, o que frequentemente os incomoda. Por não querer ser parcial, torno-me, porventura, demasiado exigente, talvez injusto. O que, de certa forma, também é um bocado estúpido.

Mas não é ridículo.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Passeio no Metropolitan

Na última vez que visitei o Metropolitan, em Nova Iorque, percorri – penso que pela primeira vez – toda a área dedicada ao Egipto. Área enorme, pela quantidade de peças mas também pelo espaço dedicado. Havia, por exemplo, uma grande sala com estátuas de grande dimensão e um tanque de água enorme entre elas, como se o Nilo tivesse um afluente perdido por ali.

Durante o meu demorado percurso, elaborei uma teoria sobre as causas do fascínio que sobre nós exercem as civilizações antigas. Teoria que postula ser esse fascínio decorrente do que elas nos fizeram chegar em matéria de arte. Ou seja, a minha ideia é que essa atracção é motivada pela imagem (culturalmente positiva) que temos dessas civilizações, prestígio que, por sua vez, é directamente proporcional à dimensão da arte que delas, hoje, conhecemos.

Assim, comecemos pelo Egipto. E comparemos com a Suméria, com a Babilónia, com a Fenícia ou com a Pérsia. Eu sei que estou a relacionar “países” com “cidades”, mas faço-o porque pretendo uma comparação entre civilizações.

Que concluo? Muito simples: terão sido, porventura, civilizações equivalentes em termos de dimensão qualitativa, ou substantiva, e, no entanto, o impacte que têm na sociedade actual, sobretudo na nossa cultura, é completamente diferente. O Egipto goza, indiscutivelmente, de muito maior protagonismo e poder de sedução.

Pergunto-me: a diferença seria a mesma se os “jardins suspensos” da Babilónia tivessem sobrevivido até hoje, como aconteceu com as pirâmides? Se compararmos a Grécia e Roma, não aceitaremos todos a ideia segundo a qual o prestígio grego é, hoje, infinitamente superior? E não o será pelas mesmas razões?

No fundo, o que quero dizer é que a arte egípcia que nos chegou (arquitectura e escultura de grandes dimensões, sarcófagos, pintura, baixos relevos, ourivesaria, etc.) é de tal modo grandiosa que contaminou o legado civilizacional de grandeza equivalente. Pode dizer-se que é pelo facto de, deste modo, nos ter ficado uma imagem física (um património visual concreto) dessa civilização. No entanto, o mesmo aconteceu com a Grécia. E a sua arte é bem diferente, pois o que mais nela imperou foi – penso – a literatura. É claro que houve escultura, arquitectura, o Fídias e os seus baixos-relevos (que estão praticamente destruídos – até mete pena ver o Parténon), e por aí fora. Assim como houve a Filosofia. Mas julgo que foi a invenção da literatura que mais nos impressionou. Pouco importa. O que é relevante perceber é que Roma não exerce o mesmo fascínio. E, na minha opinião, porque submergiu a presença da arte perante outras disciplinas, sobretudo o Direito e a “política”. É, aliás, curioso o quanto a Itália tem uma imagem completamente diferente de Roma. E, convenhamos, muito mais positiva. Ora, se tal acontece, é sem dúvida devido à arte renascentista, com Leonardo e Miguel Ângelo à cabeça. O que parece confirmar a minha tese.

Concluo, então, que a arte é a essência da nossa herança. Sobretudo como povos. Admito que estive a falar de um tempo em que a parte ocupada pela arte no seio da “cultura” era muito grande. E a parte dedicada ao saber (Filosofia, ciência) muito pequena. Por isso, admito que o legado dos povos de hoje, para memória futura (assim como o dos próprios indivíduos de per si), misture os dois tabuleiros. No entanto, a arte exerce uma atracção maior. E acho que é por via da sua perenidade. Que contrasta com o efémero da ciência e da validade das suas conclusões. Neste âmbito, a Filosofia – que o Nietzsche anunciou como o ponto de ligação entre a arte e a ciência, como o “meio caminho” entre as duas – aproxima-se, pela sua perenidade, muito mais da arte. O que beneficiou o legado grego.

Enfim, passeando em Nova Iorque, fui de novo bater ao portão do castelo que erigi em torno da mais bela de todas as coisas, para aí me instalar em emoção fracturante em relação ao espaço e à vida em redor, que teimavam, indiferentes à minha ausência, em manter a sua dependência da realidade.

segunda-feira, 25 de março de 2013

As irrealidades

Li há uns tempos uma entrevista do cronista e escritor João Pereira Coutinho, com bastante interesse.

Diz ele, a certa altura – perante uma confrontação da jornalista sobre a sua suposta irascibilidade e insolência –, que trata as pessoas como adultas. Embora saiba que as pessoas não gostam desse tratamento. Diz mesmo o seguinte: “já pensei, aliás, em escrever crónicas paralelas: de um lado, a versão “normal”, adulta; do outro, a mesma coluna, mas em versão infantil, para não perturbar os estômagos mais sensíveis”.

Já no outro dia, quando li o diário do Torga, me confrontei com um seu desabafo onde tentava explicar que a brutalidade de que por vezes o acusavam não era mais do que franqueza.

Retenho esta questão por duas razões.

Primeiro, porque vivemos num mundo de faz-de-conta, a que muitos chamam o “politicamente correcto”. Não se podem discutir certas coisas de forma racional e desapaixonada, sem se ser logo rotulado com dezenas de “mimos” emocionais diversos, como reaccionário – ou comunista, conforme os casos –, xenófobo ou racista, misógino, homofóbico e etc., etc..

Esta atitude até acaba por reduzir a liberdade de expressão. Aliás, li mais recentemente um pequeno ensaio de filosofia do Desidério Murcho (nos ensaios da FFMS), onde ele referia uma questão que eu já levantei em As minhas coisas (pelo menos). Que é, mais ou menos, a liberdade de se defender a não-liberdade. Mas não vou retomar o tema. Por outras palavras, estamos impedidos de filosofar sobre temas que se tornaram tabus – apresentando argumentos num sentido ou noutro – com a liberdade que devia ser inerente a esse filosofar.

Em segundo lugar, porque também tenho o mesmo problema. As pessoas também me acusam frequentemente de ser bruto, indelicado, agressivo, só porque as trato como adultas, porque sou franco, ou seja, porque digo aquilo que penso ser a verdade.

No fundo, o que eu acho, mais do que tudo, é que as pessoas não querem, de uma maneira geral, discutir ou trocar ideias sobre a verdade. Porque construíram “verdades” internas de forma mitológica (como as culturas fazem em relação aos mitos fundadores) e não querem que elas sejam abaladas. Como, mais uma vez, no caso da cultura, já têm uma verdade, não precisam de mais. Assim, todas as reflexões que possam pôr em causa a história do mundo que inventaram para si são encaradas como desajustadas, perigosas, indelicadas. No fundo, o que é mais forte em nós é a nossa própria ficção: não quero ouvir o que me põe em causa, mesmo que seja real e verdadeiro, quero repetir à exaustão o enquadramento mítico que criei.

Esforço-me por procurar a verdade. Na minha outra vida, posso ambicionar a irrealidade da arte. Na minha vida daqui, procuro a realidade dos factos. Mas que se perceba que a irrealidade da arte não tem nada a ver com a irrealidade desta vida, protagonizada pela infantil e vivenciada ilusão que acabei de descrever. Já tentei explicar isto várias vezes. Esta última é apenas uma fuga, um refúgio, uma protecção. Por isso, implica infantilidade, supõe, quer queiramos quer não, uma certa dose de cobardia – agarrarmo-nos às pernas do pai quando vemos algo que nos assusta.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Torga

Noutro dia, antes de dormir, fui buscar um velho diário do Torga (XI) que vai de 68 a 73. E venho aqui deixar registo de uma emoção antiga, há muito tempo não revisitada, que a leitura destes diários sempre me causou.

Logo à partida, já não me lembrava – ou nunca terei reparado – que ele não refere nomes, nem dos amigos, nem da família, nem dos “inimigos”, ou seja, das pessoas, figuras públicas (escritores, por exemplo) ou não, de quem não gosta.

Depois, voltei a sentir de forma intensa a constante transfiguração literária, muito ligada à dimensão física – os montes, os rios, as casas, as célebres “fragas” – mas com evidentes anseios de irrealidade.

Mas o que mais me impressionou foi a recordação de uma certa “desmesura”. Ele era muito genuíno nessa obsessão com o que o excedia. Independentemente de ter sido, muito provavelmente, egocêntrico, inacessível e intratável, como todos acusavam, foi, acima de tudo, um homem que tentou elevar-se, procurando atingir essa beleza que paira sobre nós e a esmagadora maioria não pressente. Há, na vida, uma grandeza celestial a chamar-nos, como a música de Bach. E se muitos a reduzem ao descanso religioso, outros se esforçam por a enfrentar, procurando algo “mais”: uma outra fé, construída em desmesura humana, que, para poder ser um dia a do Homem, começa por ser a sua própria. O Torga, como escritor, ter-me-á, acima de tudo, deixado uma marca oriunda dessa convicção, muito por mim sentida, de que nós podemos ser muito superiores ao que nos está aparentemente destinado.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Revolução, rebelião, revolta

No recentemente publicado diário da S. Sontag, Renascer, surge uma reflexão muito interessante que relaciona os conceitos de rebelião e revolução – cada vez me interessa mais a elaboração e reformulação de conceitos, cada vez entendo mais a sua importância, essencial, na filosofia.

Para ela (Sontag), rebelião significa algo de inconsequente, sem resultados práticos, algo que acabou por não se cumprir (especificamente, ela fala da ausência de sucesso). Em contrapartida, a revolução implica sucesso na empreitada, o que significa que se realizou, que se cumpriu, de forma mais ou menos completa, a alteração desejada.

A ideia é interessante, e eu pensei imediatamente no verso do Léo Ferré que me persegue há anos e diz: “ela era bela como a revolta”. Automaticamente, tentei encaixar a revolta entre os outros dois conceitos.

A primeira ideia que me surgiu foi o ser a revolta um conceito infinitamente mais belo: ninguém ousaria dizer num poema: “ela era bela como a rebelião”. Ou “como a revolução”.

Em segundo lugar, achei que a revolta, no âmbito da reflexão da Sontag, se aproximava mais da rebelião. De facto, a revolução apresenta uma estruturação, uma finalização, consequências concretas e duradouras. Enquanto a revolta pode ser totalmente inconsequente.

No entanto, o que considerei mais fecundo foi o facto de ter visto uma oposição entre uma natureza colectiva (nos casos da rebelião e da revolução) e uma natureza individual (no caso da revolta). Pelo que um indivíduo pode revoltar-se sozinho, mas não consegue fazer uma revolução, ou uma rebelião, sem um colectivo.

Seguindo este raciocínio, vi-me conduzido a uma ideia de a revolução ter sempre uma essência de direita (segundo a minha definição do par de conceitos direita e esquerda), uma vez que pretende sempre substituir um todo estruturado (que inclui um princípio unificador a combater) por um outro todo de iguais características (com um princípio unificador alternativo). Por outras palavras, há sempre um colectivismo associado (mais, provavelmente, do que um colectivo) que, assim que lhe for possível, se sobreporá à liberdade individual. No fundo, a revolução não faz mais do que substituir um complexo ideológico-doutrinal por outro. Que, como é novo, tem de se impor. Normalmente, à bruta.

A rebelião passa, seguindo esta ordem de ideias, a ser um conceito ambíguo, cujo entendimento depende das circunstâncias. Por isso menos interessante. Tanto pode ser uma revolução que fracassou antes de o ser, como uma amálgama de revoltas individuais. No primeiro caso, seria mais associado a uma dimensão colectiva. No segundo caso, a uma dimensão mais individual.
                      
Em contrapartida, a revolta pode ser vista como o grande mecanismo de protecção das liberdades e dos direitos fundamentais: “eu não aceito isto” ou “não aceito fazer isto”.

Posso então dizer que a revolta assenta numa atitude de liberdade, que não implica uma qualquer ideia ou lógica de coerência ou de amplitude de objectivos (como é o caso da revolução). Em suma, a revolta fomenta a insubmissão, enquanto a revolução exige uma submissão a uma nova organização política. Pelo que só a revolta é compatível com os valores que defendo.

Ou seja, o Ferré usou o termo mais belo e mais adequado.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Os "tudólogos"

Artigo interessante que li há tempos sobre os “tudólogos”. Ou seja, sobre a facilidade com que certos jornalistas ou opinion makers falam sobre tudo e mais alguma coisa com toda a desenvoltura. No entanto, o artigo – seriamente – também apresentava a opinião contrária, citando alguém que se perguntava sobre o que aconteceria se os homens só falassem sobre o que conhecem de forma profunda. Certamente passariam o tempo calados.

Lembrei-me do Vitorino Magalhães Godinho e de uma frase que lhe ouvi muitas vezes e dizia mais ou menos isto (criticando a especialização): “Cada vez se sabe mais a propósito de menos; qualquer dia, sabe-se tudo a propósito de nada”.

Voltando ao artigo, é fácil perceber o incómodo que nos causa ouvir certas pessoas falar erradamente sobre coisas que nós conhecemos bem. Sobretudo quando colocam grande pompa nesses comentários pseudo-doutorais. Assim como é enervante um sujeito que só fala das enzimas dos protozoários. Tem de haver, portanto, um meio termo. Porque a antítese da frase do Godinho também existe: cada vez se sabe menos a propósito de mais; qualquer dia, sabe-se nada a propósito de tudo.

Ocorreu-me pensar sobre os muitos pensadores que se interrogaram sobre o voto “inconsciente”, ou seja, o voto das pessoas que não conhecem os programas ou a ideologia dos partidos, não se interessam por questões políticas, não lêem os jornais e não acompanham a realidade social, etc.. Foi com esta interrogação que, como se sabe, se tentou múltiplas vezes reduzir o eleitorado a certas parcelas da população. E foi com esta mesma dúvida que se justificaram muitas ditaduras. Precisamente por o povo não “perceber nada de nada”.

Porém, felizmente, os votos são, nas democracias ocidentais, todos iguais. Não é como nas eleições dos clubes de futebol, em que os votos dos sócios mais antigos valem cinco ou dez vezes mais. Assim, o analfabeto conta tanto como o doutorado. O que significa também que o primeiro tem tanto direito como o segundo de opinar sobre a realidade social que o envolve.

O que pretendo dizer é que, se exceptuarmos discussões excessivamente técnicas, ou científicas, as pessoas deviam falar cada vez mais sobre coisas que dominam mal. É péssimo ficarem caladas e humilhadas perante o saber aparentemente enciclopédico dos mais desenvoltos. Isto porque o falar sobre essas coisas puxa a curiosidade e leva os indivíduos a informarem-se mais. O alheamento é um dos grandes perigos da democracia, pois ele implica desistir de participar, de vigiar, de criticar e, em última instância, de avaliar. O eleitorado cada vez tem menos consideração pelos políticos, mas continua a não se esforçar para ter conhecimento suficiente para os confrontar e punir.

É preciso que as pessoas falem cada vez mais sobre o que sabem pouco, para cada vez saberem mais sobre o que falam.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Sobre o passado

No número de Fevereiro da fantástica Philosophie magazine vem, no correio dos leitores, um texto de resposta que me chamou a atenção. Foi escrito pelo filósofo Charles Pépin.

A temática gira em torno do problema do passado e da importância que lhe devemos, ou não, atribuir na gestão do presente. As posições possíveis são, como se sabe, antagónicas: tão depressa o passado é fundamental para entendermos as características, ou a estruturação, do presente e, com esse entendimento, projectarmos o futuro de forma fundamentada, como é um entrave à capacidade de imaginarmos algo de significativamente diferente e inovador para o futuro. O autor, como eu, parecia inclinar-se mais para esta segunda versão. Pelo menos, no início do texto (depois, e muito bem, demonstrou esforço de imparcialidade e considerou a segunda abordagem). E, como seria expectável, vai buscar o Nietzsche para o ajudar. Citando este, de forma mais ou menos livre, escreve o seguinte: “voltarmo-nos para o passado é então desviarmo-nos da vida, fazer triunfar o ‘instinto do medo’ sobre o ‘instinto da arte’”.

O meu filho Manel acabou por mandar vir dos EUA a camisola que tanto cobiçava, por esta ter a seguinte frase do Nietzsche: “E os que começaram a dançar foram considerados loucos por aqueles que não conseguiam ouvir a música”.

O Nietzsche morreu no ano em que faria 56 anos (não sei se chegou a fazê-los, mas isso não é relevante agora). Ou seja, tinha a minha presente idade. E, em minha opinião, inventou o maior dos mundos cognitivos alguma vez inventado por um ser humano. Dizendo frases destas.

Opor o “instinto do medo” ao “instinto da arte” não é só genial. Até porque este conceito (genial) é de uso tão demasiado fácil como ambíguo. Direi antes que é absolutamente grandioso. É de uma dimensão indizível. Porque a arte é precisamente essa arma única de que os homens dispõem para ultrapassar os seus limites, a sua pequenez. De modo a criar o novo, o original e, ao mesmo tempo, o universal e o eterno.

O que significa, realmente, inventar o futuro.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Direitas e esquerdas

Na sequência da minha entrevista que saiu na passada quinta-feira na Visão, fui confrontado múltiplas vezes – até pela entrevistadora – com as minhas supostas contradições.

A primeira diz respeito ao facto de eu ser a favor do individualismo e me considerar de esquerda (que todos associam ao colectivismo e ao elevado peso do Estado na economia, por oposição à atitude “liberal” – de direita, portanto); a segunda, mais interessante, pretende encostar-me à extrema-direita por ser contra o Estado Social (o que não é bem verdade, apenas sou contra este Estado Social). Aliás, o grande líder do PS, seguro até no nome, dá voz a todos os que defendem a “solidariedade” (do Estado Social – é o que está subentendido) contra o “cada um por si” dos liberais fanáticos. Porque é que eu digo que esta contradição é mais interessante? Simplesmente por não se ficar pela superficialidade do económico e questionar igualmente o posicionamento das opções sociais.

Deste modo, ao defender o fim (de parte, mas ninguém quer saber disso) do ES, sobretudo na Saúde e na protecção social da velhice (através de seguros privados), eu teria de ser rotulado, imediatamente, de direitista frio e implacável, em oposição gritante com os bons corações esquerdistas que optam pela Fraternité de 1789.

Gostaria de não ter de responder, e esperar que as pessoas lessem o que realmente escrevi no livro (na entrevista era humanamente impossível explicar, apesar do excelente trabalho da jornalista), mas acho que tenho de o fazer. Mais uma vez. Assim, dirijo-me, sem rancor nem animosidade – talvez até com alguma nostalgia do que fui aos 17 anos –, a todos os que acham que existem oprimidos e opressores (tal como eu acho também) e que sentem essa injustiça no seu coração bondoso. Tal como o meu. E digo-lhes que aprendi comigo próprio (é o resultado natural da reflexão profunda e desapaixonada sobre o mundo em redor) que podia definir os opressores como aqueles que têm mais direitos do que deveres e os oprimidos, claro, ao contrário. E que aprendi outra coisa muito importante: a sociedade é uma balança muito instável que conduz à seguinte lei: quando há pessoas que têm mais direitos do que deveres, o resultado inevitável é existirem pessoas que, para compensar, são obrigadas a ter mais deveres do que direitos.

Seguindo este raciocínio, que se pretende tão pouco emocional quanto possível, considero que o homem de esquerda não pode aceitar que existam pessoas com direitos que não tenham deveres correspondentes. A essas situações, os homens (e as mulheres, claro) de esquerda habituaram-se a classificar de “privilégios”, e não de direitos.

Talvez o mais importante seja perceber-se que estas situações de “privilégio” são de combater, qualquer que seja o rótulo da pessoa que delas beneficia. Para a esquerda “convencional”, é habitual que sejam pessoas de “direita”, ou seja, ricas ou “nobres” à nascença, patrões, pertencentes a partidos de “direita” e similares. Nesses casos, não há discussão. O problema é quando os usufrutários são pessoas rotuladas de “esquerda” (por pertencerem a certos partidos ou sindicatos), ou simplesmente mais pobres, por viverem de subsídios do Estado (eventualmente acrescidos de “biscates”, à margem da lei, pelo menos fiscal). Nestes casos, já não se fala de privilégios, mas de infortúnio. O que eu entendo. Mas apenas na sociedade em que vivemos.

Se, em contrapartida, a sociedade se transformar e desaparecerem as desigualdades à nascença, como eu preconizo – e é só dessa sociedade que eu falo e não da actual –, os privilégios, tal como os defini, devem ser banidos. Quaisquer que sejam os rótulos dos seus usufrutários.

Assim, acho que a ideia de impor – na sociedade que idealizei – uma “solidariedade” que implique um indivíduo dever compensar os direitos de um outro (em assistência na Saúde, por exemplo) que não tem os deveres correspondentes (de trabalhar e pagar impostos, por exemplo), é uma ideia de uma falsa esquerda. Achar-se-á, até, que é uma ideia de direita, cada vez que se tiver a opinião de ser a direita a, habitualmente, ser complacente com os “privilégios”.

Resumindo e concluindo, é essencial compreender qual é a minha minha opinião, bastando para tal, penso, ler o que escrevi.

Mas será também bom perceber que, tal como a direita tradicional, existe uma auto-intitulada esquerda que se atribui uma enorme superioridade moral. Como se gostasse mais dos seres humanos do que os outros. É verdade que essa “esquerda” manifestou frequentemente, e de forma entusiástica, o seu empenhamento no “bem-estar” humano em que acredita. Mas temos de reconhecer que, para tal, também aconteceu ir matando os humanos que fossem necessários, até que a ideia fosse plenamente assimilada...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Youtube

Estive agora a ver uns músicos no youtube, coisa que não é muito habitual em mim (mas devia ser), e caí em cima de um filme de um miúdo coreano a cantar para esses concursos de talentos. Isto, porque o filme anunciava qualquer coisa como “abençoado por Deus” e eu percebo logo o que isso pretende significar em qualidade do desempenho do artista.

O miúdo foi abandonado no orfanato aos 3 anos e aos 5 fugiu por causa dos maus tratos que lhe infligiam, passando a viver na rua. Durante os últimos 10 anos. Tinha, portanto, 15 anos. Nunca teve lições de canto, mas nunca esqueceu essa paixão inexplicável pela música, ao ponto de, por vezes, ir dormir para perto de clubes nocturnos, de modo a ouvir o que por lá se cantava ou tocava. E quando começou a cantar, em pleno programa, encheu a sala com um vozeirão de timbre quente e doce, apesar de evidentes falhas próprias de alguém que nunca aprendeu a cantar.

A primeira reacção de todos foi de espanto. Do género: como é possível? A assistência e o juri olhavam incrédulos para o rapaz, quem sabe duvidando, pelo menos por momentos, da história que contara. Mas depressa vi lágrimas a correr pela cara abaixo de todos, como é próprio da humanidade. E o coração apertou-se-me ainda mais, perante aquela desmesurada manifestação do mistério que envolve a grandeza humana.

Na quinta-feira passada saiu uma entrevista minha na revista Visão. Certamente por erro divino, uma jornalista gostou do que leu no meu Talvez amanhã, que lhe fora emprestado por um amigo comum. E, nessa entrevista, dei as largas possíveis a essa minha paixão pelos homens. Como faria o Vergílio, tanto que me lembrei dele. O resultado final não transpareceu tanto assim esse fervor, mas alguma coisa se pôde ler a propósito da dignificação do homem e da grandiosidade da nossa condição humana. Coisa que poucos conseguem entender nesta sociedade submersa pelo imediato das coisas mesquinhas. Mas quando há pouco ouvi o miúdo, e vi todas aquelas pessoas da assistência a chorar, senti-me devidamente acompanhado, todos a viver a mesma experiência emocional, observando uma criança, traída pelos deuses e pelos homens, que se elevou ao máximo de dimensão que nos é possível conceber. Todos nos sentimos certamente traidores. Por não termos tentado tudo para impedir esta e muitas outras situações semelhantes. Mas acredito que também nos tenhamos sentido traídos pela promessa infantil de um mundo justo e de um poder absoluto e misericordioso.

Abençoado por Deus? Dá-me vontade de partir tudo à minha volta. Como aquelas mulheres histéricas que destroem os serviços de jantar nas cozinhas.

[Faz-me lembrar esse papa intelectual, que resignou na semana da minha entrevista (ofuscando-me sem remorso), que uma vez perguntou, a propósito do Holocausto: “onde estavas tu, Deus, nesses momentos?”]

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A grandeza humana

Tenho, de forma repetida, defendido a ideia de o homem ser “a medida de todas as coisas”. E, com a ideia na arte, tenho tentado convencer quem me lê – às vezes, quem me ouve – das insuperáveis grandeza e dignidade do ser humano. E da beleza ímpar da sua obra (nomeadamente em arte e filosofia).

Por outro lado (se calhar, estamos a falar da mesma coisa), sempre tenho desculpado o horror da sua restante obra (guerra, fome, crueldade, egoísmo, etc.) com a nefasta influência da sociedade, à maneira de Rousseau, e dos colectivismos opressores que giram em torno daquilo que podemos identificar com a cultura.

No Cultura e civilização, apelo ao desenvolvimento de uma ideia de cultura individual, consciente que estou de que é o colectivo, mais do que a sociedade ou a cultura (possivelmente, não é mais, pois o colectivo é a essência destas), que está na base das baixezas humanas.

Ontem, folheava uma revista e lá apareceu uma frase célebre (atribuída ao Thoreau), ou antes, uma frase ilustrando uma ideia célebre e mais antiga, segundo a qual os indivíduos, em massa [em grandes aglomerações – o Vergílio (Ferreira) chamava-lhe manada, para realçar o comportamento animal], se nivelam pelos seus elementos de mais baixo nível, em vez de se referenciarem pelo topo da tabela.

E esta frase levou-me a pensar que, apesar de toda a reflexão por mim desenvolvida ao longo dos anos tem-me servido para manter a ideia da culpabilidade dos colectivos, e da “corrupção” mental provocada pela socialização e pela aculturação, também toda a vida me tenho interrogado sobre se esta minha teoria não será absurda.

Logo a começar pelo exemplo das crianças, mesmo muito pequenas, que revelam ciúme, inveja, maldade, até violência. Ou, de forma muito mais expressiva, pelo dos pré-adolescentes, que copiam sempre o exemplo dos seus piores colegas. Mesmo quando não estão propriamente em “massa”. Temos de reconhecer que, nestas idades, o comportamento do “parte tudo” é muito mais sedutor do que o do “marrão” ou do “betinho”.

Isto, para não falar dos adolescentes, que atingem o supremo da imbecilidade humana – o modo como falam, como se vestem, como se comportam –, às vezes até tenho vontade de mudar de passeio.

Em suma, apesar das minhas manias humanistas, e à medida que vou envelhecendo, cada vez me envergonho mais, me desiludo mais, com o ser humano.

E a minha pergunta, inevitável, é esta: porque é que somos assim?

Sem dúvida que o homem se move em função do prazer. No entanto, há que compreender que há dois tipos de prazer. Porque há duas vidas. Há uma dimensão mundana, real, que se baseia num sensorial essencialmente físico. E há, depois, uma dimensão idealizada, irreal, que se baseia num sensorial mental, espiritual, metafísico. O primeiro prazer ataca o corpo. O segundo, parte da alma.

O problema é que o primeiro prazer é fácil. Descansa. Distrai. Assim, um adolescente – para pegar nesse exemplo que corresponde ao tempo das grandes interrogações – obtém mais prazer a apanhar uma bebedeira, a gritar num jogo de futebol, a andar a partir caixotes de lixo nas ruas durante a noite ou a ter sexo com esta e aquela, do que a ler, a pensar, a dedicar-se à filosofia ou à arte. É um prazer mais forte, pois corresponde a uma descarga de adrenalina física. E, sobretudo, é – como dizia atrás – muito mais fácil. Mais irresponsável. O prazer mental, intelectual, é frequentemente ínfimo quando comparado com o sacrifício necessário para o produzir.

Por outro lado, há a questão funcional. À qual se junta a do reconhecimento. É óbvio que, no início dos tempos, o homem forte, hábil na caça ou na guerra, era mil vezes mais “adaptado” em termos de selecção natural do que se cantasse umas lamechices poéticas para deleite das damas. Assim como quando, hoje, um homem funciona no “real” tem muito mais chances de sucesso – financeiro, por exemplo – do que um outro que viva “no outro mundo”. O que implica mais reconhecimento por parte da sociedade envolvente.

Assim, a oposição não se estabelece realmente entre dois prazeres, mas entre um prazer de facto, concreto e imediato, e um prazer que só o virá (eventualmente) a ser depois de anos de “espírito de missão”. Quase entre um prazer e um sacrifício. Que, a dada altura, proporciona um prazer subtil, porém incomparavelmente superior. Mas só depois de a pessoa ter penado muito. Veja-se o caso dos músicos: quanto não penou o Keith Jarrett, em solfejos e marteladas nos dedos, até ser o que é hoje? Ou até ter verdadeiro prazer em ter aprendido o que aprendeu?

De certa forma, e para concluir, acabo por achar que o homem é o que eu projecto nele de grandeza e elevação, em termos das suas capacidades, do seu potencial. E alguns homens cumpriram esse destino. São esses cuja referência perdurou, tornando-se exemplo para todos os outros.

E é dever de cada um de nós fazer um esforço para que tal seja cada vez mais frequente. Para que o homem atinja mais vezes o pleno das suas potencialidades.

É certamente uma questão de educação, também. A tal cultura individual. A que foge à ideia de massa, de colectivo. Porque não pode haver elevação e grandeza sem individualidade. E eu gostava que o homem do futuro entendesse que a procura do prazer fácil, copiada das referências mais básicas que conhece, é incompatível com a descoberta de um caminho próprio, descoberta absolutamente indispensável para que ele possa deixar uma marca de humanidade plena, ou seja, de uma presença individualizada, única, resultante da sua passagem – se calhar tão acidental, tão fortuita – por este mundo.

Como uma obra de arte.


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Ética ou moral

Procuro, na sequência de umas leituras sobre o Zaratustra – o profeta real –, a diferença entre a Ética e a Moral. Diferença que parece ser, temos de reconhecer, muito ténue.

O próprio Nietzsche terá assumido a sua provocação de ter escolhido o persa para profeta do seu super-homem, ele que se considerava o “primeiro imoralista” e, ao mesmo tempo, reconhecia a forte componente ética do sistema filosófico zoroastriano (Zoroastro é o nome grego para Zaratustra).

Voltando à minha busca, parece-me que a grande diferença está no âmbito dos conceitos: a Moral, de dimensão menor, deveria inscrever-se na Ética, conjunto mais vasto que funciona como uma parte da Filosofia tratando dos direitos, deveres, costumes e princípios de liberdade do ser humano.

No entanto, há também uma ética menos ampla, por exemplo a relacionada com a deontologia das profissões, que refere sobretudo o que não se deve fazer.

De qualquer forma, a confusão é bastante. No dicionário da Academia das Ciências, os conceitos chegam a ser apresentados como equivalentes.

De facto, se definirmos a Ética como a parte da Filosofia que procura estabelecer o que os homens devem – ou não devem – fazer, a distância que a separa da Moral é mínima, pois esta é baseada em códigos de conduta que pressupõem o mesmo (o que devemos ou não fazer) e aos quais devemos obedecer. Assim, sendo o que é “ético” o que devemos fazer, ou seja, o bem, o que está certo, a proximidade com a moral torna-se evidente: mais ética implica mais moral e vice-versa (correlação positiva).

Existem, porém, alguns exemplos de uma visão divergente.

O primeiro caso é um pouco “snob”, mas tem a ver com o facto de ter lido, já não sei onde, que a Ética estabelece as suas teses através do pensamento. Era essa a palavra usada. Por isso, a oposição ética/moral poderia ser vista como aquela que opõe (1 - Ética) a elite intelectual, académica, filosófica, que pensa nos princípios e valores humanos universais – usando a razão e os conhecimentos, como fazem os cientistas – à (2 - Moral) “plebe ignorante” que, de forma instintiva e sem grande reflexão, se habituou (por catequese social) a considerar determinados comportamentos socioculturais como sendo os “normais”, os “correctos”, reproduzindo-os, também de forma irreflectida, de geração em geração.

Em estreita ligação com esta visão, surge uma segunda onde se opõe a ideia de uma vontade de Razão (a alinhar pela equipa da Ética), quer dizer, de um racional activo, ao irracional passivo, ou seja, à irreflexão da obediência (a alinhar pela equipa da Moral).

Esta distinção parece-me fatal para a Moral e, portanto, o meu desejo de vingança poderia ficar saciado, o que me permitiria terminar a reflexão.

No entanto, há uma terceira distinção que mexeu mais comigo: a Ética implicaria uma dimensão individual, na qual o homem é soberano, e a Moral uma dimensão colectiva de submissão a uma norma criada, durante séculos, pelo colectivo social. Por outras palavras, a Ética seria o resultado de gente específica que se põe a pensar (por exemplo, membros de comissões de ética compostas por cientistas, filósofos e outros intelectuais) e que conhecemos, sabemos quem são e porque defendem certo tipo de opiniões, enquanto a Moral (podia passar a escrever com minúscula, mas depois acusam-me de parcialidade) não se sabe de onde vem. É como a pescada – antes de ser já o era.

Porém, a liberdade de escolha, na Ética, não pode ser absoluta, pois não pode colidir com os direitos dos outros. Ou seja, essa dimensão individual de que falo não pode ser associada à capacidade de decisão de cada indivíduo, mas antes à possibilidade de cada um reflectir – usando a razão e, eventualmente, a ciência – e propor ideias ou sugestões que poderão ser apreciadas através de lógicas cognitivas e não emocionais. O que não acontece, de todo, com a Moral. Por outras palavras, a Ética poderá motivar-nos, cada um de nós, a sermos filósofos, enquanto a Moral só nos pede que sejamos obedientes.

E penso que existe uma razão concreta para a Ética apresentar certas características que podemos associar a uma maior elevação de espírito. Com efeito, ela define o que não devemos fazer, deixando uma margem extensíssima para o que podemos fazer, ou seja, para a nossa liberdade individual; em contrapartida, a Moral define o que devemos fazer, pelo que essa liberdade fica, frequentemente, remetida para a eventual transgressão das normas estabelecidas. O que implica o conceito de imoralidade ser, sem dúvida, mais comum, mais frequente no vocabulário quotidiano, do que o “não-ético”. É por isso que há os “éticos” (normalmente chamamos-lhes “homens com princípios”), que são aqueles que se esforçam por não causar danos aos outros, e os moralistas, que são aqueles que obrigam os outros a agir da forma que entendem ser a melhor para o bem de todos (ver os números 16 e 36 do meu livro Cem ideias de perfeição).

Enfim, toda esta questão faz-me pensar até que ponto a Ética está próxima do meu conceito de Civilização e a Moral do meu conceito de Cultura (ver o meu ensaio Cultura e civilização). E até que ponto existe uma diferença abissal de liberdade entre esses pares de conceitos associáveis. Semelhante à diferença de liberdade resultante destas duas frases: “senta-te nesta cadeira” (Moral) ou “não te sentes nesta cadeira” (Ética). Esta última subentende, claro, que me posso sentar num número infindável de sítios. Ou, mesmo, não me sentar. Ou ir-me embora.

(re)começar

Este blogue já existe há algum tempo, não cumprindo a sua função específica, mas apenas existindo para permitir o acesso aos livros que vou escrevendo.

Tal continua a ser possível, havendo, para cada livro, um link  para o meu site www.luisvalenterosa.pt, onde os livros estão alojados. Podem, aí, ler-se como ebooks. Existe também hipótese de descarregar gratuitamente os respectivos PDFs com índice remissivo.

Neste contexto, o blogue vai começar a receber textos com reflexões que vão nascendo da minha confrontação com o mundo, seja o mais abstracto dos livros ou das revistas, seja o mais concreto dos acontecimentos a que a vida nos sujeita.