É minha intenção divulgar, através deste meio, as minhas ideias a respeito da sociedade em que vivemos, expressas em todos os livros que escrevi, mais ensaísticos ou mais literários - Luis Valente Rosa.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Carnaval

Perguntaram-me porque é que eu embirrava com o Carnaval. E eu apresentei três razões.

Em primeiro lugar, e talvez acima de tudo, porque odeio o travestismo. Como já expliquei múltiplas vezes, gosto que as pessoas assumam o que são e não se façam passar pelo que não são. Não é, de todo, um problema confinado aos homens que se mascaram de mulheres (o que não deixa de ser de um ridículo atroz). É muito mais do que isso. Nós somos pressionados a usar máscaras no dia-a-dia. Por isso, não precisamos de um dia para o fazer. Antes deveríamos ter um dia para sermos a totalidade do que nos habita, do que somos. Ou seja, temos de reconhecer que, infelizmente, a fantasia já abunda no modo como nos relacionamos com o mundo que nos rodeia: frequentemente evitamos a procura da verdade, ou a reflexão sobre o que está certo e o que está errado, para procurar abrigo no politicamente correcto, nas normas ensinadas pela tradição ou, simplesmente, no ideal-tipo que elaborámos a nosso respeito. Não precisamos, assim, de um dia com mais fantasia ainda. E mais mentira e faz-de-conta.

Em segundo lugar, é regra, no Carnaval, as pessoas encontrarem um modo de divertimento que incomoda os outros. Existe a velha máxima “É Carnaval, ninguém leva a mal”. Por isso, os “carnavaleiros” aproveitam para transgredir e, muitas vezes, fazer o que não é possível noutra altura. E essa transgressão pode ser grave, nomeadamente nos abusos de índole sexual que os homens exercem sobre as mulheres. De qualquer maneira, a coisa já é incomodativa mesmo sem esses excessos: há o hábito de fazer barulho, molhar, provocar cheiros, sujar (nem que seja com “papelinhos” ou serpentinas), assustar, etc.. Por outras palavras, o Carnaval é a institucionalização da possibilidade de causar dano aos outros contra a vontade destes. E eu sempre me perguntei: porque é que o prazer dos outros tem de colidir com o meu? Ou seja, dito de uma forma mais prosaica, porque é que esta gente se diverte a chatear os outros? E onde está a minha liberdade “sagrada” de não querer brincar ao Carnaval e não querer ser incomodado? É que o “É Carnaval, ninguém leva a mal” deve ter limites: eu não posso dar, na brincadeira, um tiro num desgraçado qualquer. Portanto, quem define o limite da transgressão? Em suma, o que me irrita é o descontrole, a ausência de deveres básicos sem os quais não concebo a vida em sociedade e, muito menos, qualquer prazer de aí viver.

Finalmente, acho completamente ridículo uma pessoa divertir-se por encomenda. Com se a alegria fosse algo programável, do género: “hoje decidi que vou estar muito contente”. É um pouco o mesmo que sinto na passagem de ano. Ora, a minha maneira de ser conduz-me logo ao oposto: quando me tiram uma cadeira, tenho logo vontade de me sentar. Por isso embirro com o divertimento obrigatório nesse(s) dia(s) específico(s).

Mas ainda me irrita mais outra coisa: a constatação, natural a partir do que disse acima, de que todas essas pessoas, que sorriem de orelha a orelha e dançam em delírio, estão a agir com superficialidade. Ou mesmo a fingir. Ou a fazer uma grande representação teatral (cada um que escolha onde melhor se encaixa). Ou, então – o que é muito pior –, são autómatos de sensibilidade comandada pelas instruções do calendário.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Liberdade e amor

A solidão é (ou não) um pressuposto essencial da liberdade? Se for, está explicado porque é que a esquerda é individualista e a direita é gregária. E por que razão a direita anda sempre a defender a família. É porque, de facto, ela implica uma limitação importante da liberdade. Pode acontecer que nós desejemos essa limitação. E que a possamos preferir a uma solidão em privação emocional (sem amor, sem filhos, etc.). Mas não deixa de existir.

Sou, deste modo, obrigado a deduzir – dedução terrível – que o amor é um conceito de direita. Pelo que a grande dilaceração do homem pode residir na sujeição a essas forças de sentidos contrários que são, ao mesmo tempo, as suas duas características essenciais: a pulsão da liberdade (esquerda) e a pulsão do amor (direita). Estou a falar de um homem não submisso a qualquer doutrina. Porque os outros poderão não ter a pulsão da liberdade (os submetidos às doutrinas de direita) ou a pulsão do amor (os submetidos às doutrinas de esquerda – veja-se, a esse título, o imaginário da extrema-esquerda do meu tempo, muito visível nas peças políticas do Sartre, no qual o amor era um capricho burguês que devia ser totalmente submetido aos interesses da revolução).

Seguindo este raciocínio (que está mesmo com ar de, em breve, se tornar delirante), só a arte poderá talvez juntar os dois conceitos. Ela envolve uma liberdade máxima (daí a necessidade de solidão e de isolamento: ninguém consegue fazer arte em grupo, acho eu) e um amor obcecado (pelo processo artístico, ou seja, pelo próprio acto de se realizar essa arte – já para não falar do que a arte significa de amor, de dádiva abnegada em prol da dignificação da vida humana).

De qualquer forma, tal teoria significaria que todos nós temos de escolher, algures no tempo, entre essas duas grandes pulsões (estou um autêntico freudiano), fazendo-o de forma objectiva, através de actos públicos como a união com outro ser (casamento ou união de facto).

Como resultado de tal teoria, podemos concluir que a direita e a esquerda não são apenas ideias, coisas interiores em nós. São também manifestações exteriores, resultantes de opções deliberadas.

O que me lixa um bocado, porque eu gostava de ser um homem de esquerda em pleno, ou seja, sem mácula, e vejo-me um esquerdista pecador, cedendo, de forma muito significativa (e de forma muito intencional), à minha pulsão de direita. E faço-o, sentindo-me bem nessa minha vertente de direita.

E não me venham (à maneira do Hegel – a “dialéctica do senhor e do escravo”) com a história de a liberdade ter mais a ver com o nosso pensamento, o nosso interior, do que com os nossos actos (com o nosso exterior). Porque a liberdade é tudo. O que significa ser também o exterior.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

A verdade

Aquilo a que chamo procurar a verdade é tentar uma apreciação, ou uma apreensão, absoluta da realidade, em vez de uma apreensão relativa. Pois a relatividade implica que seja parcial, naturalmente distorcida por via do que nos liga a qualquer coisa: pode ser um partido político ou um clube de futebol, como pode ser uma pessoa nossa amiga ou nossa familiar.

Quando existem campanhas eleitorais, por exemplo, a leitura das pessoas sobre os factos é totalmente condicionada (relativizada) pelo partido com que simpatizam. Se, amanhã, o líder do seu partido disser a mesma anormalidade que disse, hoje, o principal concorrente, os comentários e a interpretação serão totalmente diferentes. Ou como no futebol, pois nunca vi um apoiante do clube A defender que houve penalty contra o seu próprio clube e o do clube B argumentar que não houve. Isso nunca acontece. Ou estão os dois de acordo, ou cada um defende o seu clube.

No fundo, a coisa é bastante ridícula se pensarmos que as pessoas não se importam de passar por estúpidas, ou mal educadas (ou ignorantes), só para não dizerem mal dos seus. Ou seja, submetem-se ao ridículo para proteger os seus.

Mas onde eu acho que a coisa se sente mais é com os familiares, sobretudo com os filhos. É verdade que todos nós achamos natural que assim seja. Mas não deixa de ser caricato ver pais a tentarem convencer as outras pessoas de qualidades que os filhos manifestamente não têm. Ou a dizerem que determinada coisa não aconteceu – ou não aconteceu de determinada forma – quando todos sabemos muito bem a verdade.

O problema é as pessoas parecerem não perceber que não ajudam os outros. Pelo contrário, fazem com que, no dia em que o elogio seja merecido, ninguém acredite nele. Por outras palavras: em vez de ajudar, desajudam.

Porém, esta aparente estupidez no comportamento, de facto, não existe. Porque não acho que as pessoas se ridicularizem para defender os outros. Não fazem isso por serem altruístas e quererem proteger os outros. A realidade é completamente diversa.

Como já tentei explicar algures a propósito da cultura, as pessoas fazem-no para se defender a si próprias, para se auto-elogiarem. O que acontece é não quererem reconhecer que as suas características, as suas opções, não são as melhores. O objectivo não é mostrar o valor daquele partido, daquele clube de futebol ou daquele filho. O que importa é valorizar o meu partido, o meu clube, o meu filho. Porque, ao fazê-lo, estou a valorizar-me. Em suma, as pessoas não percebem que os erros dos seus protegidos não são, na maior parte dos casos, desprestigiantes para a sua própria pessoa. Acima de tudo, não percebem que o que os desprestigia – por os tornar ridículos – é precisamente a defesa de algo que surge aos olhos dos outros como inverosímil, absurdo, sem sentido.

Por todas estas razões, a procura da verdade, por parte de pessoas como eu, é quase um trabalho de detective. Quer dizer, observar e ouvir, dando o necessário desconto às apreciações relativas que vamos encontrando pelo caminho, usando a dúvida metódica em permanência. Assim fazendo, procuro ser lúcido em relação aos meus. Sobretudo em relação à família, pois não tenho partido político nem clube de futebol. Por isso sou tão crítico, o que frequentemente os incomoda. Por não querer ser parcial, torno-me, porventura, demasiado exigente, talvez injusto. O que, de certa forma, também é um bocado estúpido.

Mas não é ridículo.