É minha intenção divulgar, através deste meio, as minhas ideias a respeito da sociedade em que vivemos, expressas em todos os livros que escrevi, mais ensaísticos ou mais literários - Luis Valente Rosa.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Youtube

Estive agora a ver uns músicos no youtube, coisa que não é muito habitual em mim (mas devia ser), e caí em cima de um filme de um miúdo coreano a cantar para esses concursos de talentos. Isto, porque o filme anunciava qualquer coisa como “abençoado por Deus” e eu percebo logo o que isso pretende significar em qualidade do desempenho do artista.

O miúdo foi abandonado no orfanato aos 3 anos e aos 5 fugiu por causa dos maus tratos que lhe infligiam, passando a viver na rua. Durante os últimos 10 anos. Tinha, portanto, 15 anos. Nunca teve lições de canto, mas nunca esqueceu essa paixão inexplicável pela música, ao ponto de, por vezes, ir dormir para perto de clubes nocturnos, de modo a ouvir o que por lá se cantava ou tocava. E quando começou a cantar, em pleno programa, encheu a sala com um vozeirão de timbre quente e doce, apesar de evidentes falhas próprias de alguém que nunca aprendeu a cantar.

A primeira reacção de todos foi de espanto. Do género: como é possível? A assistência e o juri olhavam incrédulos para o rapaz, quem sabe duvidando, pelo menos por momentos, da história que contara. Mas depressa vi lágrimas a correr pela cara abaixo de todos, como é próprio da humanidade. E o coração apertou-se-me ainda mais, perante aquela desmesurada manifestação do mistério que envolve a grandeza humana.

Na quinta-feira passada saiu uma entrevista minha na revista Visão. Certamente por erro divino, uma jornalista gostou do que leu no meu Talvez amanhã, que lhe fora emprestado por um amigo comum. E, nessa entrevista, dei as largas possíveis a essa minha paixão pelos homens. Como faria o Vergílio, tanto que me lembrei dele. O resultado final não transpareceu tanto assim esse fervor, mas alguma coisa se pôde ler a propósito da dignificação do homem e da grandiosidade da nossa condição humana. Coisa que poucos conseguem entender nesta sociedade submersa pelo imediato das coisas mesquinhas. Mas quando há pouco ouvi o miúdo, e vi todas aquelas pessoas da assistência a chorar, senti-me devidamente acompanhado, todos a viver a mesma experiência emocional, observando uma criança, traída pelos deuses e pelos homens, que se elevou ao máximo de dimensão que nos é possível conceber. Todos nos sentimos certamente traidores. Por não termos tentado tudo para impedir esta e muitas outras situações semelhantes. Mas acredito que também nos tenhamos sentido traídos pela promessa infantil de um mundo justo e de um poder absoluto e misericordioso.

Abençoado por Deus? Dá-me vontade de partir tudo à minha volta. Como aquelas mulheres histéricas que destroem os serviços de jantar nas cozinhas.

[Faz-me lembrar esse papa intelectual, que resignou na semana da minha entrevista (ofuscando-me sem remorso), que uma vez perguntou, a propósito do Holocausto: “onde estavas tu, Deus, nesses momentos?”]

1 comentário:

Anónimo disse...

O seu texto fez-me lembrar uma data de coisas e deu-me vontade de postar várias perguntas, por exemplo, como é que esse papa demissionário que proferiu essas palavras a propósito do Holocausto, pode ter sido capaz de se manter por tanto tempo ao serviço dessa entidade tão distraída a que chamam Deus…
O tema que aqui trouxe também me irrita – já assisti a mais exibições desse tipo. Para limpar a alma desse e doutros azedumes recordo aqui um dos mais belos elogios da beleza do mundo, da inteligência, e também do ateísmo, que conheço. Fico melhor assim. Espero que também lhe agrade. http://www.youtube.com/watch?v=OE7SoDFRrb0&feature=player_detailpage&list=PL7D89E7DDCB5EF043
Daniel Dias