É minha intenção divulgar, através deste meio, as minhas ideias a respeito da sociedade em que vivemos, expressas em todos os livros que escrevi, mais ensaísticos ou mais literários - Luis Valente Rosa.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Passeio no Metropolitan

Na última vez que visitei o Metropolitan, em Nova Iorque, percorri – penso que pela primeira vez – toda a área dedicada ao Egipto. Área enorme, pela quantidade de peças mas também pelo espaço dedicado. Havia, por exemplo, uma grande sala com estátuas de grande dimensão e um tanque de água enorme entre elas, como se o Nilo tivesse um afluente perdido por ali.

Durante o meu demorado percurso, elaborei uma teoria sobre as causas do fascínio que sobre nós exercem as civilizações antigas. Teoria que postula ser esse fascínio decorrente do que elas nos fizeram chegar em matéria de arte. Ou seja, a minha ideia é que essa atracção é motivada pela imagem (culturalmente positiva) que temos dessas civilizações, prestígio que, por sua vez, é directamente proporcional à dimensão da arte que delas, hoje, conhecemos.

Assim, comecemos pelo Egipto. E comparemos com a Suméria, com a Babilónia, com a Fenícia ou com a Pérsia. Eu sei que estou a relacionar “países” com “cidades”, mas faço-o porque pretendo uma comparação entre civilizações.

Que concluo? Muito simples: terão sido, porventura, civilizações equivalentes em termos de dimensão qualitativa, ou substantiva, e, no entanto, o impacte que têm na sociedade actual, sobretudo na nossa cultura, é completamente diferente. O Egipto goza, indiscutivelmente, de muito maior protagonismo e poder de sedução.

Pergunto-me: a diferença seria a mesma se os “jardins suspensos” da Babilónia tivessem sobrevivido até hoje, como aconteceu com as pirâmides? Se compararmos a Grécia e Roma, não aceitaremos todos a ideia segundo a qual o prestígio grego é, hoje, infinitamente superior? E não o será pelas mesmas razões?

No fundo, o que quero dizer é que a arte egípcia que nos chegou (arquitectura e escultura de grandes dimensões, sarcófagos, pintura, baixos relevos, ourivesaria, etc.) é de tal modo grandiosa que contaminou o legado civilizacional de grandeza equivalente. Pode dizer-se que é pelo facto de, deste modo, nos ter ficado uma imagem física (um património visual concreto) dessa civilização. No entanto, o mesmo aconteceu com a Grécia. E a sua arte é bem diferente, pois o que mais nela imperou foi – penso – a literatura. É claro que houve escultura, arquitectura, o Fídias e os seus baixos-relevos (que estão praticamente destruídos – até mete pena ver o Parténon), e por aí fora. Assim como houve a Filosofia. Mas julgo que foi a invenção da literatura que mais nos impressionou. Pouco importa. O que é relevante perceber é que Roma não exerce o mesmo fascínio. E, na minha opinião, porque submergiu a presença da arte perante outras disciplinas, sobretudo o Direito e a “política”. É, aliás, curioso o quanto a Itália tem uma imagem completamente diferente de Roma. E, convenhamos, muito mais positiva. Ora, se tal acontece, é sem dúvida devido à arte renascentista, com Leonardo e Miguel Ângelo à cabeça. O que parece confirmar a minha tese.

Concluo, então, que a arte é a essência da nossa herança. Sobretudo como povos. Admito que estive a falar de um tempo em que a parte ocupada pela arte no seio da “cultura” era muito grande. E a parte dedicada ao saber (Filosofia, ciência) muito pequena. Por isso, admito que o legado dos povos de hoje, para memória futura (assim como o dos próprios indivíduos de per si), misture os dois tabuleiros. No entanto, a arte exerce uma atracção maior. E acho que é por via da sua perenidade. Que contrasta com o efémero da ciência e da validade das suas conclusões. Neste âmbito, a Filosofia – que o Nietzsche anunciou como o ponto de ligação entre a arte e a ciência, como o “meio caminho” entre as duas – aproxima-se, pela sua perenidade, muito mais da arte. O que beneficiou o legado grego.

Enfim, passeando em Nova Iorque, fui de novo bater ao portão do castelo que erigi em torno da mais bela de todas as coisas, para aí me instalar em emoção fracturante em relação ao espaço e à vida em redor, que teimavam, indiferentes à minha ausência, em manter a sua dependência da realidade.

segunda-feira, 25 de março de 2013

As irrealidades

Li há uns tempos uma entrevista do cronista e escritor João Pereira Coutinho, com bastante interesse.

Diz ele, a certa altura – perante uma confrontação da jornalista sobre a sua suposta irascibilidade e insolência –, que trata as pessoas como adultas. Embora saiba que as pessoas não gostam desse tratamento. Diz mesmo o seguinte: “já pensei, aliás, em escrever crónicas paralelas: de um lado, a versão “normal”, adulta; do outro, a mesma coluna, mas em versão infantil, para não perturbar os estômagos mais sensíveis”.

Já no outro dia, quando li o diário do Torga, me confrontei com um seu desabafo onde tentava explicar que a brutalidade de que por vezes o acusavam não era mais do que franqueza.

Retenho esta questão por duas razões.

Primeiro, porque vivemos num mundo de faz-de-conta, a que muitos chamam o “politicamente correcto”. Não se podem discutir certas coisas de forma racional e desapaixonada, sem se ser logo rotulado com dezenas de “mimos” emocionais diversos, como reaccionário – ou comunista, conforme os casos –, xenófobo ou racista, misógino, homofóbico e etc., etc..

Esta atitude até acaba por reduzir a liberdade de expressão. Aliás, li mais recentemente um pequeno ensaio de filosofia do Desidério Murcho (nos ensaios da FFMS), onde ele referia uma questão que eu já levantei em As minhas coisas (pelo menos). Que é, mais ou menos, a liberdade de se defender a não-liberdade. Mas não vou retomar o tema. Por outras palavras, estamos impedidos de filosofar sobre temas que se tornaram tabus – apresentando argumentos num sentido ou noutro – com a liberdade que devia ser inerente a esse filosofar.

Em segundo lugar, porque também tenho o mesmo problema. As pessoas também me acusam frequentemente de ser bruto, indelicado, agressivo, só porque as trato como adultas, porque sou franco, ou seja, porque digo aquilo que penso ser a verdade.

No fundo, o que eu acho, mais do que tudo, é que as pessoas não querem, de uma maneira geral, discutir ou trocar ideias sobre a verdade. Porque construíram “verdades” internas de forma mitológica (como as culturas fazem em relação aos mitos fundadores) e não querem que elas sejam abaladas. Como, mais uma vez, no caso da cultura, já têm uma verdade, não precisam de mais. Assim, todas as reflexões que possam pôr em causa a história do mundo que inventaram para si são encaradas como desajustadas, perigosas, indelicadas. No fundo, o que é mais forte em nós é a nossa própria ficção: não quero ouvir o que me põe em causa, mesmo que seja real e verdadeiro, quero repetir à exaustão o enquadramento mítico que criei.

Esforço-me por procurar a verdade. Na minha outra vida, posso ambicionar a irrealidade da arte. Na minha vida daqui, procuro a realidade dos factos. Mas que se perceba que a irrealidade da arte não tem nada a ver com a irrealidade desta vida, protagonizada pela infantil e vivenciada ilusão que acabei de descrever. Já tentei explicar isto várias vezes. Esta última é apenas uma fuga, um refúgio, uma protecção. Por isso, implica infantilidade, supõe, quer queiramos quer não, uma certa dose de cobardia – agarrarmo-nos às pernas do pai quando vemos algo que nos assusta.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Torga

Noutro dia, antes de dormir, fui buscar um velho diário do Torga (XI) que vai de 68 a 73. E venho aqui deixar registo de uma emoção antiga, há muito tempo não revisitada, que a leitura destes diários sempre me causou.

Logo à partida, já não me lembrava – ou nunca terei reparado – que ele não refere nomes, nem dos amigos, nem da família, nem dos “inimigos”, ou seja, das pessoas, figuras públicas (escritores, por exemplo) ou não, de quem não gosta.

Depois, voltei a sentir de forma intensa a constante transfiguração literária, muito ligada à dimensão física – os montes, os rios, as casas, as célebres “fragas” – mas com evidentes anseios de irrealidade.

Mas o que mais me impressionou foi a recordação de uma certa “desmesura”. Ele era muito genuíno nessa obsessão com o que o excedia. Independentemente de ter sido, muito provavelmente, egocêntrico, inacessível e intratável, como todos acusavam, foi, acima de tudo, um homem que tentou elevar-se, procurando atingir essa beleza que paira sobre nós e a esmagadora maioria não pressente. Há, na vida, uma grandeza celestial a chamar-nos, como a música de Bach. E se muitos a reduzem ao descanso religioso, outros se esforçam por a enfrentar, procurando algo “mais”: uma outra fé, construída em desmesura humana, que, para poder ser um dia a do Homem, começa por ser a sua própria. O Torga, como escritor, ter-me-á, acima de tudo, deixado uma marca oriunda dessa convicção, muito por mim sentida, de que nós podemos ser muito superiores ao que nos está aparentemente destinado.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Revolução, rebelião, revolta

No recentemente publicado diário da S. Sontag, Renascer, surge uma reflexão muito interessante que relaciona os conceitos de rebelião e revolução – cada vez me interessa mais a elaboração e reformulação de conceitos, cada vez entendo mais a sua importância, essencial, na filosofia.

Para ela (Sontag), rebelião significa algo de inconsequente, sem resultados práticos, algo que acabou por não se cumprir (especificamente, ela fala da ausência de sucesso). Em contrapartida, a revolução implica sucesso na empreitada, o que significa que se realizou, que se cumpriu, de forma mais ou menos completa, a alteração desejada.

A ideia é interessante, e eu pensei imediatamente no verso do Léo Ferré que me persegue há anos e diz: “ela era bela como a revolta”. Automaticamente, tentei encaixar a revolta entre os outros dois conceitos.

A primeira ideia que me surgiu foi o ser a revolta um conceito infinitamente mais belo: ninguém ousaria dizer num poema: “ela era bela como a rebelião”. Ou “como a revolução”.

Em segundo lugar, achei que a revolta, no âmbito da reflexão da Sontag, se aproximava mais da rebelião. De facto, a revolução apresenta uma estruturação, uma finalização, consequências concretas e duradouras. Enquanto a revolta pode ser totalmente inconsequente.

No entanto, o que considerei mais fecundo foi o facto de ter visto uma oposição entre uma natureza colectiva (nos casos da rebelião e da revolução) e uma natureza individual (no caso da revolta). Pelo que um indivíduo pode revoltar-se sozinho, mas não consegue fazer uma revolução, ou uma rebelião, sem um colectivo.

Seguindo este raciocínio, vi-me conduzido a uma ideia de a revolução ter sempre uma essência de direita (segundo a minha definição do par de conceitos direita e esquerda), uma vez que pretende sempre substituir um todo estruturado (que inclui um princípio unificador a combater) por um outro todo de iguais características (com um princípio unificador alternativo). Por outras palavras, há sempre um colectivismo associado (mais, provavelmente, do que um colectivo) que, assim que lhe for possível, se sobreporá à liberdade individual. No fundo, a revolução não faz mais do que substituir um complexo ideológico-doutrinal por outro. Que, como é novo, tem de se impor. Normalmente, à bruta.

A rebelião passa, seguindo esta ordem de ideias, a ser um conceito ambíguo, cujo entendimento depende das circunstâncias. Por isso menos interessante. Tanto pode ser uma revolução que fracassou antes de o ser, como uma amálgama de revoltas individuais. No primeiro caso, seria mais associado a uma dimensão colectiva. No segundo caso, a uma dimensão mais individual.
                      
Em contrapartida, a revolta pode ser vista como o grande mecanismo de protecção das liberdades e dos direitos fundamentais: “eu não aceito isto” ou “não aceito fazer isto”.

Posso então dizer que a revolta assenta numa atitude de liberdade, que não implica uma qualquer ideia ou lógica de coerência ou de amplitude de objectivos (como é o caso da revolução). Em suma, a revolta fomenta a insubmissão, enquanto a revolução exige uma submissão a uma nova organização política. Pelo que só a revolta é compatível com os valores que defendo.

Ou seja, o Ferré usou o termo mais belo e mais adequado.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Os "tudólogos"

Artigo interessante que li há tempos sobre os “tudólogos”. Ou seja, sobre a facilidade com que certos jornalistas ou opinion makers falam sobre tudo e mais alguma coisa com toda a desenvoltura. No entanto, o artigo – seriamente – também apresentava a opinião contrária, citando alguém que se perguntava sobre o que aconteceria se os homens só falassem sobre o que conhecem de forma profunda. Certamente passariam o tempo calados.

Lembrei-me do Vitorino Magalhães Godinho e de uma frase que lhe ouvi muitas vezes e dizia mais ou menos isto (criticando a especialização): “Cada vez se sabe mais a propósito de menos; qualquer dia, sabe-se tudo a propósito de nada”.

Voltando ao artigo, é fácil perceber o incómodo que nos causa ouvir certas pessoas falar erradamente sobre coisas que nós conhecemos bem. Sobretudo quando colocam grande pompa nesses comentários pseudo-doutorais. Assim como é enervante um sujeito que só fala das enzimas dos protozoários. Tem de haver, portanto, um meio termo. Porque a antítese da frase do Godinho também existe: cada vez se sabe menos a propósito de mais; qualquer dia, sabe-se nada a propósito de tudo.

Ocorreu-me pensar sobre os muitos pensadores que se interrogaram sobre o voto “inconsciente”, ou seja, o voto das pessoas que não conhecem os programas ou a ideologia dos partidos, não se interessam por questões políticas, não lêem os jornais e não acompanham a realidade social, etc.. Foi com esta interrogação que, como se sabe, se tentou múltiplas vezes reduzir o eleitorado a certas parcelas da população. E foi com esta mesma dúvida que se justificaram muitas ditaduras. Precisamente por o povo não “perceber nada de nada”.

Porém, felizmente, os votos são, nas democracias ocidentais, todos iguais. Não é como nas eleições dos clubes de futebol, em que os votos dos sócios mais antigos valem cinco ou dez vezes mais. Assim, o analfabeto conta tanto como o doutorado. O que significa também que o primeiro tem tanto direito como o segundo de opinar sobre a realidade social que o envolve.

O que pretendo dizer é que, se exceptuarmos discussões excessivamente técnicas, ou científicas, as pessoas deviam falar cada vez mais sobre coisas que dominam mal. É péssimo ficarem caladas e humilhadas perante o saber aparentemente enciclopédico dos mais desenvoltos. Isto porque o falar sobre essas coisas puxa a curiosidade e leva os indivíduos a informarem-se mais. O alheamento é um dos grandes perigos da democracia, pois ele implica desistir de participar, de vigiar, de criticar e, em última instância, de avaliar. O eleitorado cada vez tem menos consideração pelos políticos, mas continua a não se esforçar para ter conhecimento suficiente para os confrontar e punir.

É preciso que as pessoas falem cada vez mais sobre o que sabem pouco, para cada vez saberem mais sobre o que falam.